Protocolo da cloroquina difundido por médica piauiense não funciona na Espanha
ERA O DIA 14 de maio
quando Damares, ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, chegou a
Floriano, no interior do Piauí, para conferir o que ela mesma chamou de
“milagre da cloroquina”. Baseada não em ciência, mas em mensagens de WhatsApp e
lives nas redes sociais, ela acreditou que a UTI do hospital regional Tibério
Nunes havia sido esvaziada porque os pacientes teriam tomado a medicação e se
curado da covid-19.
O diretor do hospital,
Justino Moreira, negou a informação. “A gente até usa, em nível de atenção
básica, numa fase precoce aqui no município. Porém, isso não tem dado
resultados”, disse o médico em entrevista à imprensa, dois dias após a visita
de Damares. Mas já era tarde para explicações. “Estou levando esse protocolo
para o Brasil inteiro”, prometeu a ministra em um vídeo gravado dentro do avião
que a levava do Piauí para Brasília.
O tal protocolo que tanto
animou Damares – e tem como base a prescrição de hidroxicloroquina associada ao
antibiótico azitromicina para pacientes com sintomas leves da covid-19 – vem
sendo defendido há pouco mais de um mês pela médica Marina Bucar Barjud, uma
piauiense que vive em Madri. Foi a experiência de aproximadamente dois meses
adquirida durante o enfrentamento da pandemia na Espanha, diz ela, que a motivou
a tentar difundir o tratamento no Brasil, começando por Floriano, onde vive
parte da família Bucar.
Não demorou muito para que
o canal no YouTube e o perfil da médica no Instagram, criados em abril,
conquistassem milhares de seguidores. Sem se basear em evidências científicas,
Barjud vem se dedicando a gravar lives, dar palestras online para médicos e
falar em todas as entrevistas possíveis sobre os maravilhosos resultados do uso
precoce do protocolo em pacientes com o novo coronavírus atendidos no hospital
HM Puerta de Sur, onde ela trabalha, na capital espanhola. O Puerta de Sur é um
hospital universitário e faz parte um consórcio com outras instituições do país
que estuda a eficácia da hidroxicloroquina no tratamento de mulheres grávidas.
Ela só esquece de dizer
que o “sucesso” da medicação não é unânime nem no país em que começou. O
protocolo não é aceito pelo Ministério da Saúde na Espanha, que segue entre os
países mais afetados pelo coronavírus. Em 27 de maio, a Espanha tinha 236.769
pessoas com a doença e 27.118 mortes registradas em decorrência do novo
coronavírus.
Pior: com base em
evidências científicas, a Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos
Sanitários alertou os profissionais de saúde do país para os riscos da
cloroquina e da hidroxicloroquina, que podem causar distúrbios
neuropsiquiátricos, incluindo sintomas agudos de psicose, suicídio ou
tentativas de suicídio. Também há risco de problemas cardíacos, em especial no
uso de doses altas da droga e quando o produto é “administrado com outros
medicamentos que também compartilham esse possível risco, como a azitromicina”
– exatamente a combinação que Barjud defende.
Na Bahia, por exemplo, o
médico, Gilmar Calazans Lima, de 55 anos, começou a tomar por conta própria a
combinação hidroxicloroquina e azitromicina para tratar a covid-19 em casa. Por
quatro dias ele teve uma leve melhora, mas, no último, sofreu um mal estar
súbito e morreu. Em Manaus, um estudo preliminar chegou a ser interrompido
depois que 11 pacientes morreram após serem submetidos ao tratamento com
cloroquina.
Nesta segunda, a própria
Organização Mundial de Saúde, a OMS, suspendeu os testes com hidroxicloroquina
nas pesquisas que estava realizando em cerca de 400 hospitais pelo mundo. A
decisão foi tomada depois do estudo publicado na revista The Lancet com 96 mil
pacientes sobre os riscos do remédio, entre eles o aumento de mortes por
problemas cardíacos. Na França e na Itália o uso da hidroxicloriquina no
tratamento da covid-19 foi proibido. Não que o Ministério da Saúde tenha dado
atenção à OMS ou qualquer desses estudos. Após a notícia, o órgão manteve o
protocolo com a indicação para que os médicos usem hidroxicloroquina em
pacientes com sintomas leves da covid-19.
Apesar disso, a campanha
da médica em prol da cloroquina no Brasil segue a todo vapor e convencendo
outras pessoas além de Damares. No dia 13 de maio, o Ministério Público Federal
do Piauí entrou com uma ação na justiça para obrigar a União, o estado e o
município de Teresina a adotarem o “Protocolo covid-19″, como foi batizada a
orientação de uso indiscriminado de hidroxicloroquina da médica na fase inicial
da doença. A justificativa foram as inexistentes evidências “de êxito […]
capitaneadas pela médica piauiense Marina Bucar Barjud”.
No dia 20, uma semana
depois da visita de Damares a Floriano, o Ministério da Saúde divulgou um
protocolo indicando o uso da cloroquina nos pacientes com covid-19 desde os
primeiros sintomas. Essa, aliás, foi a divergência que levou o agora
ex-ministro da saúde Nelson Teich a pedir demissão pouco antes de completar um
mês no cargo.
De acordo com o Ministério
da Saúde, o médico é quem vai decidir sobre a prescrição do remédio, mas o
paciente terá que aceitar o tratamento e assinar um Termo de Ciência e
Consentimento por meio do qual se diz ciente de que “não existe garantia de
resultados positivos para a covid-19 e que o medicamento proposto pode
inclusive apresentar efeitos colaterais”.
O próprio Conselho Federal
de Medicina, cuja decisão de liberar o remédio serviu de respaldo para a
política desastrosa de Bolsonaro, tem uma série de ressalvas. A principal
delas: “não há evidências sólidas de que essas drogas tenham efeito confirmado
na prevenção e tratamento dessa doença”.
A visibilidade nacional
que Barjud conquistou também está ajudando a promover a faculdade particular da
família em Floriano. Mesmo morando em Madri, a médica coordena o núcleo de
pesquisa e extensão da instituição. Na página inicial da faculdade, dois textos
em destaque evidenciam o orgulho em tê-la na casa. “Seu estudo, dedicação,
coragem e reconhecimento do seu trabalho pela comunidade médica e pela
sociedade, reafirma e eleva a responsabilidade social e o compromisso que a
FAESF tem junto a comunidade, de sempre oferecer o conhecimento, a pesquisa e a
extensão”, diz um deles.
Pesquisa, no entanto, não
tem sido uma bandeira defendida pela médica. Em uma de suas lives, Barjud
defende que é preciso “saber o momento de ser super detalhista com a ciência,
super exigente com a ciência e o momento em que a gente tem que ser um médico
da beira do leito”.
Vários pesquisadores
testaram os efeitos da hidroxicloroquina e descobriram que o medicamento não é
eficaz para tratar pacientes com a covid-19, incluindo aqueles com sintomas
leves. Quatro estudos foram publicados em revistas renomadas como a The New England
Journal of Medicine, JAMA e The BMJ apenas em maio.
Dois deles, realizados em
Nova York com mais de mil pacientes cada, observaram que a hidroxicloroquina
não resultou em uma menor ou maior taxa de intubação ou morte dos pacientes.
Também não houve resultado na redução da taxa de mortalidade, mesmo quando
associado à azitromicina. Um terceiro estudo mostrou que o remédio não alterou
a sobrevivência, o desmame do oxigênio ou a alta do hospital. Nem mesmo os
pacientes com menos sintomas responderam melhor à medicação. Outro estudo
controlado, cujos grupos de pacientes foram escolhidos aleatoriamente, mostrou
que aqueles tratados com hidroxicloroquina tiveram mais efeitos adversos do que
os que não foram tratados com o medicamento.
No dia 18 de maio, a Associação
de Medicina Intensiva Brasileira, a Sociedade Brasileira de Infectologia e a
Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia publicaram diretrizes para o
tratamento farmacológico de pacientes com a covid-19 e sugeriram não utilizar
hidroxicloroquina ou cloroquina e nem a combinação desses medicamentos com
azitromicina, devido ao “nível de evidência baixo”.
Tentei contato com Barjud
no dia 20 por e-mail e pelo seu Instagram profissional, que é atualizado com
frequência com os anúncios de eventos de que ela participa. Também mandei
mensagem pelo WhatsApp no dia 21, mas ela respondeu, através do irmão, que se
apresentou como responsável por marcar suas entrevistas, que não iria falar. Em
uma das suas postagens, a média reforça que não instituiu o protocolo que
divulga e que ele se baseia na “troca constante de informações entre os
diversos hospitais de Madrid e dos colegas italianos”. O mundo científico,
acrescenta a médica, mudou com a covid-19 e, por isso, “não podíamos esperar
evidência maior”.
Barjud não publicou nenhum
artigo sobre os resultados positivos da associação de hidroxicloroquina e
azitromicina no tratamento precoce de pacientes. Por enquanto, o que se
verifica é que o protocolo importado de Madri não faz milagre, mas enche os
olhos de quem prefere deixar a ciência de lado quando convém.
Fonte: The Intercept Brasil


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